Gaza abre festival de cinema com filme sobre morte de palestina de 5 anos


A cerca de 15 quilômetros da Cidade de Gaza, em Deir al-Balah, centenas de palestinos se reúnem enfileirados diante de uma televisão de 55 polegadas montada sob uma tenda em um campo de refugiados.

Conectado a um computador e plugado a algumas caixas de som, o monitor exibe o filme “A Voz de Hind Rajab” – docudrama que relata o caso da menina palestina de 5 anos morta por militares israelenses, no início do ano passado. Alguns assistem em completo silêncio, outros reagem emocionalmente, relatam os organizadores.

A obra abriu o provável primeiro evento cultural no território palestino desde o início do cessar-fogo entre Israel e Hamas. O Festival Internacional de Cinema de Mulheres de Gaza começou neste domingo (27) e seguirá até sexta-feira (31) com a exibição de 79 filmes de 28 países, no total.

O fundador e presidente do festival, Dr. Ezzaldeen Shalh, afirmou à CNN que cerca de 250 pessoas compareceram à abertura, que propositalmente coincidiu com o Dia Nacional da Mulher Palestina. Mulheres e crianças são as maiores vítimas do conflito e representam mais de 70% dos 67 mil mortos, segundo o Escritório de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas).

“Saudações aos amantes da vida em meio à morte – damos as boas-vindas a todos. Misericórdia aos mártires e cura aos feridos. Vivemos a vida em todos os seus detalhes, sabendo que há milhares de histórias esperando para serem contadas através do cinema”, disse Shalh no início do evento.

“Por meio deste festival, pretendemos empoderar as mulheres para criar filmes que reflitam suas lutas em Gaza e as exibam internacionalmente, permitindo que as mulheres contribuam para a narrativa palestina por meio do cinema”, completou.

Ele agradeceu ao Ministério da Cultura palestino – sediado em Ramallah, na Cisjordânia e ligado à AP (Autoridade Palestina) – pelo apoio ao evento e à equipe que trabalhou por cerca de um ano para organizar o festival.

Shalh também homenageou “todos os cineastas de Gaza que continuaram a criar filmes em condições extremamente difíceis – obras que refletem temas humanitários e expõem a brutalidade da ocupação ao mundo” e apelou aos cineastas ao redor do mundo para que contribuam para a produção de obras sobre o território palestino.

Representando as mulheres da organização do evento, Faten Harb discursou e destacou que “a ocasião carrega dois significados profundos” – o Dia da Mulher Palestina e o festival.

“Dois eventos unidos em mensagem e espírito, ambos homenageando a mulher palestina, que nunca foi uma mera espectadora da história, mas sempre esteve no centro dela, a moldando com suas mãos, a narrando com sua voz e a imortalizando através de suas lentes”, completou Harb.

Por conta do bloqueio imposto por Israel, os organizadores de fora de Gaza e cineastas estrangeiros envolvidos no evento não puderam comparecer ao festival.

A diretora tunisiana Kaouther Ben Hania enviou um vídeo, que foi exibido antes do filme de abertura.

“A verdade é que estou muito feliz que o filme será exibido em Gaza. Quer dizer, a palavra “feliz” não tem significado. Mas eu tenho um sentimento de gratidão em relação a Gaza, aos resistentes, por quem eu fiz este filme”, disse na mensagem compartilhada pelos produtores do filme à CNN.

“Para mim, “A Voz de Hind Rajab” é a voz de Gaza. Uma voz que pede ajuda ao mundo inteiro e que permanece sem ser ouvida. Eu fiz este filme para que a voz de Gaza seja ouvida. E hoje o povo de Gaza assiste a este filme. E, para mim, este é um ato de resistência. Porque a resistência tem muitas faces. E entre as faces que ela tem está o fato de falarmos sobre o que aconteceu em Gaza, de contarmos as histórias do nosso povo em Gaza. Agradeço a presença de vocês. E espero que um dia eu visite Gaza, e que Gaza tenha se recuperado da grande ferida que sofreu. Obrigada”, completou.

O filme conta a história da menina palestina de 5 anos assassinada com seus parentes em um carro que foi alvo das forças israelenses em Gaza. Rajab inicialmente sobreviveu ao ataque e chegou a contatar o Crescente Vermelho, mas o veículo foi encontrado posteriormente com ela e os agentes humanitários que foram socorrê-la mortos.

A obra, que inclui o áudio original da ligação feita por Hind Rajab para agentes humanitárias momentos antes de ser morta, foi indicada pela Tunísia para concorrer ao Oscar e venceu o Leão de Prata do Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza, quebrando o recorde de tempo de aplauso.

O festival em Gaza seguirá até sexta-feira (31), quando serão anunciados os vencedores da primeira edição. As exibições durante a semana acontecem em uma sala do Sindicato dos Jornalistas Palestinos, em Deir al-Balah.

Festival levou um ano para ser organizado

O festival de cinema está sendo organizado há cerca de um ano por um grupo de mais de 50 pessoas – majoritariamente mulheres, de dentro e fora de Gaza.

“Em Gaza, temos cinco pessoas que organizam o festival e assumem responsabilidade por cada detalhe da organização. E temos também 25 voluntários. Fora de Gaza, somos um grande grupo de diretores, roteiristas, assistentes e tantas outras pessoas que trabalham com cinema e engajaram nessa iniciativa”, disse à CNN o Dr. Ezzaldeen Shalh, que fundou e preside o evento.

“Na organização, somos três homens. Só estou aqui porque tive a ideia”, brinca.

A presidente honorária do festival é a cineasta Monica Maurer, diretora e ativista da causa palestina há décadas. Para a avaliação dos filmes, há um júri de documentários e outro de “filmes narrativos”.

O júri de documentários é presidido pela diretora palestina Annemarie Jacir, cujo filme “Palestina 36” foi selecionado para representar a Palestina no Oscar de 2026. Também compõem o júri o produtor do Bahrein Bassim Al Thawadi, a produtora italiana Graziella Bildesheim, o diretor do Kuwait Abdulaziz Al-Sayegh e a editora cubana Maricet Sancristobal.

Já o júri de “filmes narrativos” é presidido pela diretora francesa Céline Sciamma. Também compõem o júri o diretor marroquino Mohamed El Younsi, a atriz italiana Jasmine Trinca, o escritor e diretor palestino Fajr Yacoub e a atriz e diretora teatral argelina Moni Boualam.

“Os filmes selecionados para serem exibidos nessa edição não falam somente sobre as mulheres de Gaza ou sobre a mulher palestina. São 79 filmes que contam as histórias de mulheres do mundo todo”, diz à CNN Mohammad Sahli, que também colabora na organização.

“Nossos equipamentos foram destruídos”

Os organizadores discutiram a possibilidade de realizar o evento de forma virtual, mas o cessar-fogo – em vigor desde o dia 10 de outubro – possibilitou a concretização do festival em Gaza.

O plano do Dr. Ezzaldeen era levar o evento para o centro cultural Rashad Al Shawwa – um local proeminente da cultura palestina, na Cidade de Gaza, que acabou destruído pelos bombardeios israelenses.

Palestinos assistem exibição de filme do Festival Internacional de Cinema de Jerusalém, em Gaza, em 2024. Organizadores esperam receber cerca de 300 pessoas por dia na primeira edição do Festival Internacional de Cinema de Mulheres de Gaza, a partir de 26 de outubro. • Reprodução / Cortesia à CNN
Palestinos assistem exibição de filme do Festival Internacional de Cinema de Jerusalém, em Gaza, em 2024. Organizadores esperam receber cerca de 300 pessoas por dia na primeira edição do Festival Internacional de Cinema de Mulheres de Gaza, a partir de 26 de outubro. • Reprodução / Cortesia à CNN

“Pensamos em fazer nos escombros do centro, mas não temos certeza se há alguma bomba que não explodiu. E quando fomos visitar o local, já havia se transformado em um ponto de refúgio”, explicou.

Por fim, os organizadores decidiram realizar o festival em um campo de refugiados na cidade de Deir al-Balah, a cerca de 15 quilômetros da Cidade de Gaza.

Apesar das dificuldades impostas pela situação humanitária no território, os organizadores se desdobraram para garantir a estrutura necessária.

“O projetor que tínhamos antes da guerra e todos nossos equipamentos foram bombardeados e perdemos literalmente tudo”, relatou o Dr. Ezzaldeen.

“A única opção que temos hoje é uma TV de 55 polegadas. Não encontramos nada maior. Quando você pergunta para outras pessoas e organizações, eles também perderam tudo. Vai ser pequeno, mas não temos outra solução”, acrescentou, explicando que eles conseguiram também caixas de som para garantir que todos escutassem os filmes.

Televisão de 55 polegadas exibe filme do Festival Internacional de Cinema de Jerusalém, em Gaza, em 2024. Equipamento será utilizado novamente, a partir do dia 26, na primeira edição do Festival Internacional de Cinema de Mulheres de Gaza. • Reprodução / Cortesia à CNN
Televisão de 55 polegadas exibe filme do Festival Internacional de Cinema de Jerusalém, em Gaza, em 2024. Equipamento será utilizado novamente, a partir do dia 26, na primeira edição do Festival Internacional de Cinema de Mulheres de Gaza. • Reprodução / Cortesia à CNN

O presidente do festival disse que a principal dificuldade é o acesso a eletricidade, já que o sistema elétrico de Gaza foi destruído pelos ataques israelenses.

“Tivemos que alugar um gerador, que é caro porque não há energia solar. E vai precisar de combustível, que também não tínhamos. Tentamos resolver todos esse problemas para as pessoas que estão esperando o festival”, completou.

Com o estabelecimento do festival, os organizadores esperam poder oferecer cursos de cinema para mulheres de Gaza a partir de janeiro – uma ideia que só não saiu do papel ainda pela falta de verba.

“Uma das metas mais importantes do festival é organizar esse programa de treinamento. A ideia é organizar cursos de seis meses para 20 mulheres e o resultado seria a produção de cinco curtas, que seriam exibidos no festival. Se organizarmos cursos assim todos os anos, em algum tempo vamos ter um grupo forte de mulheres cineastas em Gaza”, declarou o fundador do festival.



Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/gaza-abre-festival-de-cinema-com-filme-sobre-morte-de-palestina-de-5-anos/

{title}